O aumento significativo nas contas de energia elétrica de consumidores que utilizam Sistemas de Geração Fotovoltaica no Rio Grande do Norte revelou uma crise que não é apenas tarifária. Trata-se de um fenômeno que envolve, simultaneamente, os fundamentos jurídico-regulatórios do setor elétrico, a estrutura econômica das tarifas, a compreensão limitada do público sobre os mecanismos de compensação de energia e, ainda, a apropriação política de um tema complexo para fins de disputa ideológica partidária.
O problema não aparece isolado. A mudança tarifária é consequência do Marco Legal da Micro e Minigeração Distribuída aprovado em 2022 pelo ex-presidente Bolsonaro (Lei 14.300/2022), sobretudo do regime de transição previsto para os sistemas que ingressaram na geração distribuída após janeiro de 2023. No entanto, em vez de uma discussão técnica sobre os limites da TUSD, da incidência de ICMS e da manutenção dos incentivos para energia renovável, instalou-se uma disputa de narrativas. Grupos políticos, Rádios e Blogs de Extrema-Direita passaram a sustentar que o Governo do RN estaria “TAXANDO O SOL” e penalizando quem produz energia limpa, enquanto setores beneficiados defenderam a legalidade estrita da cobrança e criticando apenas o modo como a concessionária lidou com a comunicação ao consumidor.
Este dossiê tem como objetivo separar fatos de juízos políticos e demonstrar, de forma metodologicamente rigorosa, qual é a verdade normativa e regulatória que disciplina a matéria, quem está juridicamente correto e onde a politização artificial distorce o debate público.
I. A Estrutura Jurídica que Fundamenta a Cobrança: O Marco Legal e a Transição Normativa
A Lei Federal 14.300 de 2022 instituiu o Marco Legal da Micro e Minigeração Distribuída. Seu objetivo de criação foi a tentativa do governo agradar o lobby da energia solar e “equilibrar o incentivo à expansão da energia renovável com a necessidade de custeio adequado da rede elétrica”. Muitas análises que circulam nas redes sociais ignoram que esse arcabouço jurídico não é improvisado nem recente. Ele é fruto de anos de ensaios e estudos regulatórios realizados pela Agência Nacional de Energia Elétrica e por órgãos de planejamento do setor.
A lei estabeleceu que unidades consumidoras com sistemas fotovoltaicos conectados até 6 de janeiro de 2023 permaneceriam em regime de benefício integral, sem pagamento da TUSD fio B até 2045. O legislador, entretanto, criou um regime distinto para novos sistemas, que passaram a ser obrigados a pagar parte da tarifa de distribuição. Esse pagamento é progressivo e reflete, em tese, o princípio de que todos os usuários da rede devem contribuir para sua manutenção.
A atuação das concessionárias é vinculada ao marco legal vigente e as distribuidoras não têm discricionariedade para dispensar encargos setoriais. A legalidade é “estrita”, e o descumprimento da lei poderia “acarretar punições regulatórias”. Portanto, a cobrança não é opcional e tampouco política, decorre de decisões governamentais da época, sem alheias aos interesses sociais e pontualmente benéfica a NEOENERGIA COSERN.
II. A Lógica Econômica da TUSD:
Uma das maiores fontes de incompreensão é o funcionamento da TUSD. Grande parte da população acredita que, ao instalar painéis solares, deixa de utilizar a rede elétrica. ESSA PERCEPÇÃO É EQUIVOCADA. A rede elétrica continua a ser utilizada em sua totalidade.
A TUSD remunera as funções de transmissão e distribuição que permitem que o sistema elétrico “funcione”, mesmo para unidades consumidoras autogeradoras. A rede absorve o excedente de energia, conduz os créditos para compensação, assegura o fornecimento noturno e garante estabilidade quando as condições climáticas reduzem a produção fotovoltaica. Em outras palavras, a rede funciona como um grande banco de energia, permitindo que o produtor-consumidor injete e retire energia do sistema. Essa estrutura foi pensada para não se sustentar sem custeio permanente.
O equívoco conceitual difundido até pelos vendedores de sistemas de placas fotovoltaicas é a premissa de que “a energia solar eliminaria o uso da rede”, o que faz com que muitos consumidores considerem a cobrança injusta. Contudo, é determinante entender que o conceito e a aplicação da “justiça tarifária” exige que todos os consumidores que utilizam “a infraestrutura macro” contribuam para sua manutenção. A “ausência de contribuição” de um grupo geraria, em tese, “transferência de custos” para os demais, criando “distorção tarifária” e comprometendo a “modicidade tarifária”, conceitos acentuados no debate energético, necessitando que a sociedade busque estudar tais elementos destacados.
III. A Falha na Comunicação e o Descompasso com o Direito do Consumidor
Se, por um lado, o fundamento jurídico da cobrança é sólido, por outro, a implementação revela falhas graves. A concessionária não realizou processo informacional adequado para alertar os consumidores sobre o impacto financeiro que seria experimentado com o início da cobrança. A comunicação foi insuficiente, pouco pedagógica, fragmentada e incapaz de preparar financeiramente quem havia realizado investimentos de longo prazo.
A legislação consumerista impõe dever de clareza, precisão, transparência e adequação da informação. A forma como a cobrança foi aplicada no RN parece ter rompido a confiança legítima do consumidor. Embora a distribuidora estivesse de fato “apenas cumprindo a lei”, faltou a ela a obrigação correlata de preparar o mercado consumidor para a transição. O déficit de transparência não anula a legalidade da cobrança, mas expõe a possibilidade de responsabilização sob perspectiva de má informação ou informação insuficiente.
É nesse ponto que se localiza a crítica mais juridicamente consistente dos consumidores: a cobrança pode ser legal, mas a comunicação foi inadequada e até inexistente.
IV. A Construção Artificial de uma Indignação Pública
A discussão técnica foi rapidamente absorvida pelo ambiente político e transformada em slogan. Grupos de Extrema-Direita passaram a disseminar expressões que não correspondem à realidade normativa, como se a cobrança fosse um tributo inventado pelo governo estadual, um “ato de perseguição” às políticas de implementação e incentivo das energias renováveis ou uma “tentativa de inviabilizar a energia solar”.
Essa apropriação política indevida distorce o debate e dificulta a compreensão pública do tema. A expressão “taxação do sol” não possui qualquer aderência jurídica, política ou factual. E isso deve ficar bem claro: NÃO HÁ TRIBUTAÇÃO SOBRE A GERAÇÃO SOLAR, mas sobre o uso da rede.
A confusão terminológica é intencional. Produz-se indignação pública para fins políticos eleitorais, ainda que sem fundamento técnico, sendo esta a última manifestação de interesse da classe política extrema.
O uso político da matéria impede um debate sério sobre segurança regulatória, incentivos necessários, previsibilidade tarifária e eficiência do setor. Essa politização artificial se contrapõe ao trabalho institucional que o país precisa realizar para fortalecer energias renováveis.
V. Quem Está Certo na Disputa:
A análise meticulosa do caso revela que diferentes partes da controvérsia detêm razões distintas. E é preciso coragem para enfrentar o discurso raso das redes sociais e aplicar a verdade factual:
A concessionária está juridicamente correta ao aplicar a cobrança, pois cumpre estritamente o marco legal criado na gestão passada do Governo Federal. E nesse ponto é preciso revelar que não há ilegalidade na incidência da TUSD nem do ICMS sobre a parcela tarifária.
Os consumidores possuem razão ao alegar quebra de expectativa legítima, notadamente aqueles que não foram adequadamente informados sobre as consequências tarifárias do novo regime. Há fundamento jurídico para discutir falha no dever de informação e na comunicação regulatória.
A classe política que instrumentaliza o tema está equivocada ao sugerir que a cobrança seja arbitrária, tributária ou fruto de decisão ideológica. Trata-se de construção retórica, desconectada do ordenamento jurídico e elaborada para gerar mobilização emocional.
Dito isto, essa distinção entre legalidade, legitimidade e narrativa é crucial.
VI. Conclusão:
A energia solar é elemento essencial da matriz energética estratégica do Brasil. Nenhuma sociedade avançada pode permitir que debates técnicos de alta complexidade regulatória sejam capturados por discursos político-emocionais. O aumento das faturas no RN não decorre de perseguição ideológica do Governo do RN, nem de tributação indevida, nem de iniciativa unilateral da distribuidora. Decorre de determinação legal expressa, construída sob o discurso para “equilibrar sustentabilidade energética, justiça tarifária e manutenção da infraestrutura”.
A crítica que subsiste não está na cobrança, mas na comunicação. A concessionária falhou na pedagogia regulatória. O Estado falhou na comunicação institucional. E setores políticos falham ao manipular o tema para fins de disputa, obscurecendo a compreensão pública e criando desconfiança num sistema que exige estabilidade regulatória para funcionar.
A função editorial do Blog do Doutor é justamente recolocar o debate no plano correto, com rigor técnico, precisão jurídica e análise institucional. Ao restituir ao público a verdade do arcabouço legal e separá-la das narrativas artificiais, cumpre-se a missão de elevar a qualidade do debate público e proteger a racionalidade das políticas energéticas nacionais.


