O Descompasso Metodológico entre as Alegações Finais e o Parecer no Processo nº 116/2025 da Câmara Municipal de Natal

O Processo Administrativo nº 116/2025, instaurado na Câmara Municipal de Natal para apuração de suposta infração político-administrativa imputada à vereadora Brisa Bracchi tornou-se um caso paradigmático para a compreensão dos limites constitucionais da atuação sancionatória das Casas Legislativas. A controvérsia, decorrente da destinação de emenda impositiva para custeio de cachês artísticos de evento cultural posteriormente divulgado com título de conotação crítica a figura pública de relevo nacional, gerou dois documentos cujo contraste revela o ponto exato em que a dogmática jurídica foi substituída por uma narrativa de feição política: as Alegações Finais da defesa, de inequívoca maturidade técnica, e o Parecer Final da Comissão Processante, cuja fundamentação se distancia das exigências normativas próprias do regime sancionatório aplicável aos agentes políticos.

A Constituição Federal estabelece que a perda do mandato parlamentar por quebra de decoro exige demonstração inequívoca de conduta atentatória à dignidade do exercício do cargo. Essa previsão, longe de ser cláusula geral aberta entregue ao arbítrio político do órgão julgador, constitui categoria jurídica dotada de densidade normativa própria. Doutrinadores clássicos como Nelson de Souza Sampaio assinalam que o decoro não se confunde com a moralidade íntima ou com a mera reprovação política de comportamentos, exigindo ato concreto que produza degradação objetiva da imagem institucional da Casa Legislativa. Celso Ribeiro Bastos, ao comentar o art. 55 da Constituição, segue na mesma direção ao afirmar que a moralidade protegida pelo conceito de decoro é a “moralidade externa”, vinculada à preservação do prestígio do Parlamento e não à avaliação ideológica das manifestações de seus membros.

As Alegações Finais da jovem Edil estruturam-se em consonância com essa leitura restritiva, demonstrando que crítica política e manifestação cultural, mesmo que fortemente impregnadas de significado ideológico, não constituem, por si só, violação do decoro, salvo quando instrumentalizadas de forma inequívoca para fins partidários ou eleitorais. A defesa reconstrói o quadro fático: o objeto da emenda parlamentar se restringia ao pagamento de cachês artísticos; a execução administrativa correu a cargo da Fundação Cultural Capitania das Artes (FUNCARTE); a vereadora não participou da definição da estética do evento, da escolha do título ou da curadoria; e nenhuma prova testemunhal confirmou pedido de voto, promoção de partido ou uso de recursos públicos para veiculação de conteúdo partidário. Essa reconstrução atende ao rigor exigido pela doutrina majoritária, que repele a responsabilização baseada em conjecturas ou inferências subjetivas.

O Parecer Final, contudo, abandona essa moldura metodológica e passa a operar com categorias jurídicas fluídas, confundindo crítica política com ato partidário, expressão cultural com propaganda ideológica e repercussão pública com finalidade ilícita. O documento afirma que o evento, ao ter sido posteriormente divulgado com o título “Bolsonaro na Cadeia”, assumiria caráter político-partidário, convertendo automaticamente a destinação da emenda em desvio de finalidade. Tal premissa confronta frontalmente o entendimento clássico de Hely Lopes Meirelles e Maria Sylvia Zanella Di Pietro, para quem o desvio de finalidade exige demonstração concreta do elemento volitivo, não sendo admissível sua presunção. O desvio, por ser vício subjetivo do ato administrativo, exige prova da intenção do agente em alcançar fim diverso daquele previsto na norma de competência, e não pode ser inferido a partir de manifestações culturais ou satíricas realizadas por terceiros.

A insuficiência probatória do parecer torna-se evidente quando se observa que nenhum dos elementos políticos atribuídos ao evento (pulseiras confeccionadas pelos organizadores, críticas manifestadas pelo público, títulos adotados pelo coletivo cultural) foi financiado com recursos públicos ou determinado pelo gabinete da vereadora. A doutrina de Oswaldo Aranha Bandeira de Mello ressalta que a finalidade administrativa é aferida a partir da motivação e da materialidade do ato, jamais da repercussão social que este venha a adquirir por elementos exógenos. O Parecer Final ignora esse ponto e desloca a análise para fatores externos ao ato administrativo que deu origem ao apoio cultural, produzindo imputação incompatível com o princípio da tipicidade material.

Outro aspecto em que a divergência metodológica entre as Alegações Finais e o Parecer Final se evidencia diz respeito ao nexo de causalidade. O sistema sancionatório dos agentes políticos não admite responsabilidade subjetiva. O mestre José dos Santos Carvalho Filho, ao tratar da responsabilização administrativa, afirma que é imprescindível demonstrar a ação ou omissão voluntária que produziu o resultado ilícito, sob pena de violação direta do devido processo legal substancial. No caso concreto, a prova testemunhal é categórica: a vereadora não organizou o evento, não participou da escolha do título, não interferiu na curadoria, não solicitou alteração estética e não distribuiu material que pudesse ser interpretado como propaganda partidária. Nada disso foi enfrentado pelo parecer de maneira substancial; optou-se por atribuir responsabilidade à vereadora como consequência lógica da existência do evento, o que nada mais é do que imputação subjetiva eivada de juízo moral relativo.

A regularidade do procedimento administrativo tramitado na FUNCARTE reforça ainda mais a ausência de dolo e de desvio de finalidade. Todos os servidores e gestores ouvidos afirmaram que os processos referentes à emenda tramitaram de forma regular, obedecendo aos requisitos da Lei 14.133/2021. O despacho preventivo, utilizado pelo parecer como indício de ciência da irregularidade, foi, segundo os próprios servidores, medida de caráter genérico, sem qualquer carga impeditiva ou comunicacional dirigida ao gabinete parlamentar. A presidente da Fundação foi ainda mais explícita ao reconhecer que não havia elementos, à época da análise administrativa, que indicassem finalidade político-partidária. A decisão do relator de ignorar esse conjunto probatório enfraquece o parecer e o afasta dos requisitos mínimos de motivação exigidos para decisões sancionatórias.

Outro ponto de dissenso significativo entre os dois documentos é a análise das nulidades processuais. A divergência entre as Alegações Finais e o Parecer Final não é apenas de grau, mas de natureza. Enquanto a defesa opera dentro dos limites do direito administrativo sancionador, exigindo tipicidade estrita, comprovação de dolo, demonstração de nexo causal, irregularidade procedimental e inadvertência à doutrina constitucional sobre decoro, o parecer desloca a análise para uma esfera de valoração política, utilizando elementos externos à conduta da vereadora para fundamentar imputação grave, sem correspondência com o tipo sancionador previsto em lei.

O resultado é um parecer que, embora formalmente articulado, carece de densidade dogmática, incorre em presunções incompatíveis com o regime sancionatório e ignora garantias essenciais do processo parlamentar.

O poder sancionatório das Casas Legislativas não pode ser manejado segundo a lógica da conveniência política ou da sensibilidade ideológica do momento. A cassação de mandato exige aderência estrita à legalidade, prova robusta, demonstração clara de dolo e respeito às garantias constitucionais. Sempre que o direito cede espaço à narrativa, o Estado de Direito se fragiliza. As Alegações Finais, ao contrário do parecer, mantêm fidelidade aos princípios estruturantes do modelo sancionatório brasileiro, e por isso representam leitura juridicamente mais apropriada do caso.

Assim, a nossa opinião jurídica tecnicamente fundada só pode conduzir a uma conclusão: O parecer da Comissão Processante é insuficiente em sua construção, falho em seus pressupostos normativos e fragilizado em sua prova, pois, não atende às exigências do regime sancionatório, não demonstra desvio de finalidade, não comprova violação ao decoro e não supera as nulidades estruturais que comprometem o procedimento.

O Estado Democrático de Direito não admite que a cassação de um mandato eletivo se fundamente em presunções ideológicas ou desconfortos políticos. Exige rigor jurídico. E, à luz desse rigor, o processo de cassação não se sustenta.

Referências Bibliográficas

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